segunda-feira, 7 de março de 2022

Pensando como um criminalista

De acordo com reportagem do Diário do Pará publicada hoje, na última quinta-feira, 3 de março, em Marabá, um homem de 57 anos amarrou um de seus netos, de 12, e o açoitou com cordas. Como é recorrente nestes tempos, a agressão foi filmada e acabou nas redes sociais, gerando repercussão. Veja aqui a reportagem e o vídeo, borrado para não ser tão terrível, se achar que vale a pena.

Não sabemos o que motivou o ataque, se o agressor estava ciente de que era filmado nem qual o motivo da divulgação das imagens, atribuídas a uma adolescente, talvez também neta do espancador. Sabemos que os menores foram encaminhados ao Conselho Tutelar, para providências, e que todos os adolescentes e crianças (em um total de 6 pessoas) estão sendo criados pelo avô, ou seja, são financeiramente dependentes dele. A certa altura do vídeo, é possível escutar o menino gritar "ai, vô, tá bom!". Isso me faz pensar em um contexto de temor reverencial.

A reportagem afirma em duas passagens que a polícia local está apurando os fatos como possível crime de maus-tratos, tipo previsto no art. 136 do Código Penal, com a seguinte descrição:

Art. 136 - Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina:
Pena - detenção, de dois meses a um ano, ou multa.
[...] § 3º - Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (catorze) anos.

A meu ver, considerando a natureza e a intensidade da agressão (embora não tenhamos notícia de lesões corporais decorrentes), bem como a absoluta indefensividade da vítima, a polícia de Marabá está sendo estranhamente parcimoniosa, pois mesmo minha mente antipunitivista encara o caso como sendo tortura, conforme tipificação do art. 1º, II, da Lei n. 9.455, de 1997:

Art. 1º Constitui crime de tortura:
[...] II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
[...] § 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
[...] II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos;
[...] § 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.
§ 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.

A diferença de capitulação penal traz consequências bastante severas, no que diz respeito à quantidade de pena cominada; ao impedimento das medidas despenalizadoras da Lei n. 9.099, de 1995; à caracterização de crime hediondo (e seu impacto para progressão de regime e liberdade condicional); à vedação à possibilidade de fiança e ao regime fechado inicial obrigatório.

Em um raciocínio simplista (os raciocínios em matéria penal são frequentemente toscos e ilegais, inclusive quando manifestados por profissionais do Direito), o caso se resolveria com a prisão do agressor, seu processamento e condenação a uma pena exemplar, tudo permeado com belos discursos sobre a proteção da criança. Exceto quanto à prisão preventiva e a uma "pena exemplar", eu não diria que essas consequências estão erradas, em uma análise estritamente baseada da dogmática penal, considerando ainda a aparência de prova suficiente para a compreensão do fato em si. Mas é meu dever fazer uma ponderação. Você prestou atenção na parte em que mencionei que o agressor é mantenedor financeiro da família? Ainda que não seja o único, foi dito que ele cria os netos.

O fato, citado pela reportagem, de que o agressor garante a subsistência de ao menos 6 netos, inclusive da própria vítima, torna o caso bastante melindroso. Esta é daquelas situações em que a facilidade da solução dogmática não é capaz de enfrentar as consequências humanas que não apenas o delito, mas a intervenção estatal sobre ele, provocariam. E bem sabemos que intervenções estatais costumam ser devastadoras, sobretudo porque, hoje em dia, do policial ao ministro das cortes superiores, os agentes da persecução criminal parecem possuídos por uma questionável convicção de que são guerreiros em uma batalha pela salvação dos mais desvalidos ou de uma abstrata sociedade. Os discursos penais são cada vez mais salvacionistas, o que nos remete àquela instigante provocação que se tornou corriqueira na seara penal: quem nos protege da bondade dos bons?

Evidentemente, precisaríamos de maior conhecimento sobre como está estruturada a família na qual ocorreu esse desastre. Um dos maiores problemas de qualquer análise criminal é a insistência das pessoas em olhar os fatos do modo mais limitado possível (a conduta criminosa em tese), quando o único modo de compreendê-los seria na amplitude dos contextos pessoais, sociais, econômicos, educacionais, religiosos e de outras ordens. 

Neste caso, em particular, temos a velha discussão em torno da violência como recurso educacional. A reportagem cita a Lei n. 13.010, de 2014, cognominada "Lei Menino Bernardo" ou "Lei da palmada", que veda todo castigo físico ou tratamento cruel ou degradante contra crianças e adolescentes. Recordo-me claramente de que, enquanto o projeto de lei tramitava no Congresso Nacional, impulsionado por um bárbaro homicídio intrafamiliar de criança (a velha estratégia brasileira de lei penal decorrente de crime específico), as pessoas por aí protestavam como nunca costumam fazer quando se discute o endurecimento da legislação. Qual era o mote? Os políticos não podem dizer se eu vou ou não bater no meu filho! Quem decide sou eu!

Entendeu o tamanho do problema que temos nas mãos? Não duvide: muita gente apoiará a atitude desse avô, mesmo sem saber nada sobre as circunstâncias concretas do caso. Legitimarão a barbárie como um direito natural daquele que cria, que investe o seu dinheiro, principalmente se for pouco. Outros criticarão o excesso, mas não a violência em si. 

Isto posto, gostaria de convidar o distinto leitor a se manifestar sobre este caso. Não precisa ser uma análise jurídica. Quero que você se ponha no lugar de alguém em posição de autoridade para tomar alguma decisão oficial sobre o futuro dos envolvidos. O que você faria? O que entende relevante ser analisado? O que é que deve ser defendido em caráter prioritário nesse contexto?

Agradeço pela contribuição que puder oferecer.

quinta-feira, 3 de março de 2022

Nosso amigo Karl

Há poucos dias, vi o filme O jovem Karl Marx (Le jeune Karl Marx, dir. Raoul Peck, 2017), uma cinebiografia que já nas legendas iniciais demonstra admiração pelo biografado. Não creio que force a mão no vício da hagiologia, mas admito que roteiro e direção recortaram aquilo que ajuda a elevar a figura histórica. Não se abordam polêmicas ali; as controvérsias são centradas na perseguição que o filósofo etc. sofreu por suas ideias, que levariam à implosão das engrenagens de poder existentes.

Karl e Jenny: mais ou menos patriarcado.
O filme oferece uma narração informativa, como se o objetivo principal fosse dar a conhecer aquele personagem ao grande público, que certamente desconhece a trajetória de um homem que quase sempre é descrito com ódio e má-fé. Vemos, p. ex., um homem que trabalhava para sustentar sua família, quando não era banido de seus direitos. Mas um destaque muito significativo é a relação de Marx com sua esposa, Jenny von Westphalen, uma garota de família endinheirada, que abriu mão de tudo por sua história de amor. E ela não o fez submissa: era extremamente culta e ajudou ativamente o marido a produzir. O legado de Marx não é  compartilhado apenas com Engels, mas também, e decerto principalmente, com ela.

Eu já havia lido que a relação de Marx com a esposa e com as filhas era carinhosa e respeitosa, o que merece atenção no contexto da época e das dificuldades que a família enfrentava. Mas não passarei pano: Marx pulou a cerca e traiu os deveres do casamento com uma empregada, Helena Demuth, com quem teve um filho, cuja paternidade foi assumida por Engels, a seu pedido. Que feio, Karl. Que feio. Mas não serei eu a exigir perfeição de ninguém. Como nos ensinou a sitcom Brooklin Nine-Nine, olhar nossos ídolos de perto acaba em decepção.

Seja como for, em meio a tantos ídolos de barro (eu nem gosto da palavra ídolo; a meu sentir, não idolatro ninguém), Marx deixou sim um legado que só é negado pelos doidinhos hidrofóbicos. Seu trabalho intelectual é singular e metodologicamente admirável, mesmo que você opte por recusar as conclusões a que ele chegou. 

Nesse clima, achei muito interessante a matéria da sempre bem-vinda Deutsche Welle sobre Karl Marx ser um homem à frente de seu tempo. Ela o afirma em cinco argumentos. Leia aqui. Confira lá, se quiser.

terça-feira, 1 de março de 2022

305+

Desculpem a insistência, mas esta é a principal questão atual do país.

Faltam 305 dias e um pouco mais de 18 horas para o término da República das Milícias. Não há como não comemorar essa esperança.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Mais um capítulo da História

Somos acostumados a pensar a História como algo do passado, a tal ponto que nos esquecemos de que o que hoje chamamos de História um dia foi o presente e o cotidiano das gerações que nos antecederam. Logo, o que os noticiários e as redes sociais exibem, e até mesmo o que está diante dos nossos olhos, um dia será chamado de História. Em geral, não pensamos nisso, mas às vezes os fatos são tão grandiosos que não há dúvida quanto a sua futura inserção nos debates históricos, nos livros e nas aulas.

Acordamos hoje com a notícia, já esperada há semanas, de que a Rússia iniciou uma guerra contra a Ucrânia. Não sou jornalista nem cientista político, por isso não me cabe nem me disponho a noticiar ou a fazer análises de conjuntura. Para isso, há os especialistas e os recursos apropriados. A palavra que tenho é apenas um lamento, pelas vidas que serão perdidas ou atropeladas de outras formas, quem sabe de modo irreversível.

Meu sentimento também é de indignação, porque os homens brancos bilionários continuam dando as cartas no mundo, degradando conceitos civilizatórios como liberdade em prol de seus projetos de poder. Não que seja surpresa, claro. Não sou tão ingênuo assim. Mas é estranha esta sensação de que, nos grandes momentos, fica parecendo que não mudamos nada, já que repetimos as mesmas estratégias, basicamente com os mesmos custos.

Só que o mundo mudou. E a ideia de uma guerra acontecendo muito longe daqui e que, por isso, em nada nos afetará, é uma possibilidade a ser descartada. As dinâmicas econômicas fazem com que os rumos da economia de um grande país provoque efeitos imprevisíveis pelo resto do mundo. Sem falar nos custos humanos (mortes, fome, migrações forçadas, etc.) e na confirmação de nossa incapacidade de tratar nossas diferenças de modo civilizado. Se falha a diplomacia de modo tão grave, como resolveremos outros problemas?

Enfim, hoje não é um dia a ser comemorado. Torcemos pelo melhor desfecho, porque precisamos, mas o desânimo é grande.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Garimpando as alegrias

A segunda-feira, 7 de fevereiro, terminou neste instante. Contra si, já tinha o fato de ser uma segunda-feira destes tempos pouco auspiciosos. Mas, parando para pensar, foi um dia a ser valorizado. Vejamos.

Pela manhã, realizei uma audiência criminal que envolveu interrogatório dos réus e, pela primeira vez, senti que temos chances nesse processo. Eu realmente acredito que os acusados não merecem a acusação sofrida e que eles chegaram a essa situação por conta de enviesamentos que passam, inclusive, por sentimentos de culpa de terceiros. Alguém que, para suportar essa culpa, transferiu-a para eles dois. Não dá para explicar mais do que isso. O fato é que estou mais animado quanto a uma possível absolvição.

Agora à noite, uma longa conversa com uma pessoa muito querida, com quem se pode compartilhar alegrias, tristezas e até mesmo experiências de vida. Dá uma renovada na alma.

Depois disso, um novo contato, desta feita com alguém que pode me ajudar em minha pesquisa no doutorado. Eu estava preocupado, porque para a pesquisa acontecer eu preciso de ações de terceiros, ou seja, é algo que não depende de mim. É bastante complicado ter algo tão grande em mãos e estar de certa forma à deriva. Contudo, felizmente, esse primeiro passo foi positivo. Não vejo a hora de tornar a pesquisa real.

Era só isso, mesmo. O compartilhamento de breves satisfações pessoais. Espero que vocês estejam bem e com saúde. Abraços.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

331

Só para não perder de vista, faltam 331 dias e cerca de 4 horas e meia para nos livrarmos do pior desgoverno que já tivemos neste país.

Se isto é uma contagem regressiva? Ora, estou em contagem regressiva desde outubro de 2018!

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

O primeiro ano se foi

Em 2 de maio de 2007 publiquei uma postagem intitulada "Dias velozes virão", título que corresponde a um esquete da antiga TV Pirata. E embora isso não seja novidade, novamente me vejo em meio à sensação de "nossa, como foi rápido!"

Estou finalizando as disciplinas do doutorado. E até já as teria concluído se não tivesse cursado duas disciplinas além do mínimo necessário. Daí me deparo com o fato de que o resultado do processo seletivo foi divulgado em 25 de fevereiro do ano passado e minha primeira aula ocorreu em 26 de março. Considerando que tenho meu último trabalho de disciplina para entregar no dia 31 próximo, serão 11 meses entre o resultado e a finalização da primeira etapa. Muito, muito rápido.

Ao todo, foram seis disciplinas, cinco delas totalmente virtuais. Conheci muita gente adorável, de ao menos sete Estados diferentes. Isso me pôs em contato com outras realidades e, em especial, com indígenas e quilombolas, que hoje têm acesso à pós-graduação. Foi bastante enriquecedor para mim.

E tendo observado as grandes fragilidades do projeto de pesquisa que me permitiu ingressar no PPGD-UFPA, começo a repensá-lo. Agora é trabalhar para a futura qualificação, além de resolver outras exigências curriculares. O importante, mesmo, é estar motivado e satisfeito com essa oportunidade que estou tendo.

2022 não será um ano fácil. Espero, ao menos, estar à altura.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Novos e queridos advogados

Em uma outra vida, quando este blog era alimentado regularmente, eu adorava retirar, da lista de aprovados no exame da Ordem dos Advogados do Brasil, os nomes dos meus ex-alunos(as). Era uma forma de continuar acompanhando suas vidas, em uma fase que é tão intensa e transformadora, capaz de determinar muito em tudo que virá.

Com as minhas questões pessoais, fui parando de publicar a lista e, depois, até mesmo de fazer postagens por aqui. Mas hoje, justamente hoje, um dia atípico pelo contato pessoal que tive com um gesto de enorme generosidade e decência, saiu a lista do exame mais recente e pude, novamente, ver a alegria de alguns pupilos, expressa por suas redes sociais ou até mesmo em mensagens diretas.

O problema dessas listas é que, com o tempo, vai ficando difícil recordar os nomes, ainda mais agora que sou um sujeito de meia idade! Até reconheço alguns nomes, porém fico sem saber se é exatamente quem estou pensando. Por isso, sempre faço a ressalva de que estou feliz por todos, mesmo que, eventualmente, minha memória tenha traído um nome que, na verdade, eu adoraria homenagear também. Seguem, então, os nomes que este velhinho de óculos identificou:

Aila Tiemi Werneck de Castro da Silva
Alana Souza Vidigal
Ananda Maria Carmona Guimarães
Beatriz Donza Cancela Guimarães
Beatriz Lima Sherring
Beatriz Ribeiro Ruffeil
Henrique Galate Moraes Lima
Ivna Lobato Pimenta
José Dã Clay Guimarães Ferreira
José Ney de Siqueira Mendes Barbalho
Juliana Corrêa Gonçalves
Marcelle Albuquerque da Silva
Maria Eduarda Amparo das Mercês Pereira Wagner
Maria Vitoria Reis Hesketh
Mayumi Correa Botelho
Pollyana Esteves Soares
Saore da Conceição dos Santos
Teodoro de Souza Neto
Yasmin Coelho Prestes

Desejo a todos e todas, inclusive os não listados, uma belíssima carreira. É motivo de orgulho participar de uma carreira de que essas pessoas tão queridas fazem parte.

Ao futuro!

sábado, 8 de janeiro de 2022

Nenhum outro começo seria admissível

Que me conste, o presidente da República Federativa do Brasil toma posse perante o Congresso Nacional, em cerimônia que se inicia às 15 horas do dia 1º de janeiro subsequente à eleição. 

Em sendo assim, faltam 357 dias e pouco mais de 15 horas para nos livrarmos da maior desgraça que o perverso e insensato povo brasileiro permitiu que se abatesse sobre o país. A contagem regressiva começara em 2019, mas não há como desligar esse contador a partir de agora. E eu não teria como escrever qualquer coisa no blog antes disso.

Está acabando! Se sobrevivermos (ênfase no condicional), haveremos de ver outro dia finalmente chegar. Não será maravilhoso, mas ao menos poderemos respirar.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Registros para minhas filhas

Na noite de ontem, meu amigo Ricardo Dib Taxi, outrora meu aluno na graduação e agora meu professor no doutorado, fez uma alusão a este blog e até recomendou a sua leitura às colegas, dizendo, com a gentileza de sempre, que assim poderiam conhecer "o Yúdice escritor".

Fiquei meio confuso na hora. Por muitas e muitas vezes, registrei por aqui meu desejo de prosseguir publicando neste blog, que rivaliza com o meu profundo desânimo em fazê-lo de fato. Agora, em 2021, ensaiei um retorno novamente, mas os meses de total silêncio demonstram que a inércia segue vencendo por larga vantagem. A esta altura, outros fatores se somam ao meu desejo, ou até necessidade, de recolhimento, que já dura mais de seis anos.

Acredito, e até já comentei por aqui, que o tempo dos blogs passou. Quando comecei, em 2006, todo mundo estava criando um blog, para tratar de qualquer coisa. Eu mesmo agi assim, para dar vazão a uma compulsão por emitir opiniões que ninguém pediu. Estava ancorado na classificação "blog de opinião", basicamente um modo simpático de descrever a nossa vaidade opiniosa. Mas era um tempo em que as pessoas ainda se preocupavam em checar fontes e em repassar informações minimamente confiáveis. Sempre foi uma preocupação minha. As redes sociais tragaram os blogs, que seguiram mais como uma ferramenta de trabalho, seja para comunicadores em geral, seja para aqueles que desejavam publicar sobre suas respectivas áreas de atuação.

Sempre dediquei este blog a textos sobre meu campo profissional, seja em relação às chamadas ciências criminais, seja em relação à docência. Contudo, o blog nunca teve perfil especificamente profissional, sendo permeado por uma miríade de outras questões, inclusive muita bobagem, que cai bem em ambientes descontraídos, não nos profissionais. Essa falta de identidade não ajuda a tornar o seu trabalho uma referência para o público.

Daí o tempo passou. As redes sociais fizeram os seus estragos, eu me tornei recluso e o mundo a nossa volta se fechou para debates racionais, preferindo a troca de baba hidrofóbica. Hoje, precisamos argumentar para tentar convencer as pessoas de coisas óbvias e outrora pacíficas, como a forma da Terra ou a importância da vacinação. Em um passado nem tão distante, coisas assim não seriam sequer cogitadas. E eu, realmente, não tenho paciência nem saúde para debater temas ou para me demorar em abordagens que, sinceramente, são lunáticas. Com todo o respeito à boa gente selenita.

Dito tudo isto (não consigo deixar de ser prolixo), a persistência deste blog e sua errática alimentação  passou a cumprir uma outra finalidade. Muitas vezes me peguei lendo textos antigos e sorrindo, porque eram registros de vivências cariciosas, mormente as familiares. O blog passou a ser, de fato, um diário, no sentido de relicário de memórias. Serve para mim mesmo, mas sobretudo para minhas filhas. Se eu morresse hoje, elas teriam este espaço como um modo de conhecer um pouco mais o pai que tiveram, por suas ideias - as boas, as ruins, as tolas. Sim, esta é minha principal motivação atual. Mesmo com a plena consciência de que os textos deste blog foram produzidos por uma pessoa muito, muito diferente. A maior diferença, sobretudo em relação às publicações mais antigas, reside no fato de que o Yúdice atual abandonou, há muito, as proclamações absolutas e a facilidade de ofender quem pensa diferente. Até sinto vergonha desses meus comportamentos pretéritos, mas para mim é uma questão de princípio não apagar nem alterar os textos. Eu era aquela pessoa e publiquei os textos. A cara foi dada a tapa. Acho justo arcar com as consequências.

Em suma, não concordo mais e nem me orgulho de boa parte do conteúdo do blog. Entendo-o, apenas, como expressão de um ser humano, em seu próprio tempo e de acordo com suas próprias circunstâncias.

Quanto ao "Yúdice escritor", isso entra na conta da extrema gentileza do Dib. Eu gostaria de ser um escritor, mas não sou. Poderia tornar-me, mas não me vejo com recursos para fazê-lo por enquanto. Objetivos, inclusive. Tempo. Nível de dedicação. Mas quem sabe ainda contarei uma boa história. Por ora, agradeço.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Os maiores ladrões de banco do Brasil

Há dois dias, o portal Uol publicou uma reportagem na qual três jornalistas se dispõem a apresentar, ao público leitor, "os maiores ladrões de banco do país", como está designado na manchete. Leia aqui. Naturalmente, sem nenhuma surpresa, eles escrevem sobre bandidos tradicionais, digamos assim. Sobre sujeitos marginais que escolheram uma vida de crimes e se tornaram bandidos perigosos, até porque esse ramo da criminalidade não é para qualquer um, eis que envolve necessidade elevada de planejamento, investimento e recursos.

Em minha humilde opinião, que ninguém pediu, os maiores ladrões de banco do país são aqueles que drenam os recursos das instituições financeiras ao ponto de colocá-las na iminência da bancarrota ou que as quebram, efetivamente. Com isso, em vez de usurpar o patrimônio de uma grande empresa, que tem seguro, usurpam dos correntistas e investidores, que muitas vezes perdem tudo que amealharam ao longo de suas vidas. Alegadamente para impedir prejuízos a essas vítimas inocentes, pode ocorrer de o governo federal aportar recursos, ou seja, usar o dinheiro do contribuinte para salvar o banco.

Eu gostaria que os grandes portais de notícias fizessem reportagens assim: colocando o bandidão fortemente armado exatamente no mesmo patamar do executivo de sobrenome estrangeiro, educação estrangeira e hábitos estrangeiros, que desfila nas colunas sociais, nos eventos mais badalados, nas reportagens que celebram seus grandes feitos como empresários; que é amigo de políticos influentes e abre sua mansão para os burocratas que deveriam fiscalizá-los ou processá-los. Gostaria que essas reportagens também contabilizassem os prejuízos, pois isso certamente demonstraria que os roubos milionários das catervas são menores do que aqueles que ocorrem nas salas das diretorias. Também gostaria que nos informassem quem foi parar na lista de mais procurados e quem não; quem foi preso e quem não; e o que ocorreu com eles passados alguns anos.

A história recente do Brasil ofereceria vários nomes para compor essa desejada e ilusória matéria. Nem daria trabalho procurar. Agora mãos à obra. Que tal dar nome aos bois?

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Onde estarão as pessoas decentes?

Eu sei, é claro, que existem pessoas capazes de legitimar a violência de muitas formas e que, por isso, transferem esse tipo de atitude para as gerações seguintes. Fazem-no pelo exemplo, usando agressões como forma de comunicação em âmbito familiar ou fora dele, ou como expressão didática, p. ex. ensinando os filhos a resolver suas desavenças no soco.

Mas eu acredito, suponho, tenho esperança de que também existem pessoas regidas pelo código da bondade. Não essa bondade condicionada a supostas valorações sobre "justiça", cujo efeito prático é criar distinções entre quem merece respeito e quem não; que merece viver, inclusive. Uma bondade em sentido mais originário, a tal regra de ouro já conhecida na filosofia grega antiga e amplamente difundida pelo cristianismo: não faças aos outros aquilo que não queres que seja feito contigo. Aliás, milhões de pessoas passaram longas horas dentro de igrejas, escutando seus sacerdotes falar sobre uma mensagem de amor, de perdão e até de dar a outra face, deixada por Jesus Cristo.

Assim matutando, não consigo parar de pensar nos familiares desses agentes de segurança pública que, com frequência crescente, têm sido mostrados nas redes sociais, às vezes na imprensa comum, agredindo, humilhando, torturando e até assassinando seres humanos, ainda que culpados de algum ilícito, porém francamente indefesos frente a seus algozes. Penso nesses pais, mães, cônjuges, filhos (sobretudo os mais crescidos) que se defrontam com a realidade de que alguém muito próximo deles, alguém amado por eles, seja capaz dessas atrocidades repugnantes. Eu não conseguiria conviver com alguém assim. Não poderia olhar seu rosto sem horror nem ficaria no mesmo espaço sem um desejo extremo de ir embora.

Violência e abuso de autoridade são práticas rotineiras na experiência brasileira, naturalizadas, banalizadas e aplaudidas. O sistema sempre protegeu seus malfeitores e está mais aparelhado do que nunca para fazê-lo, reagindo aos questionamentos que agora sofrem com mais frequência, com argumentos jurídicos, quando não com os sempre bem sucedidos discursos de nós contra eles. Mas não é no sistema que estou pensando: é nas pessoas. É, p. ex., na esposa que vê imagens de seu marido surrando com cassetete uma mulher caída no chão e consegue se deitar ao seu lado todas as noites. Ou na mãe amorosa que ensinou seu garotinho a tratar bem os outros. Ou no filho ou filha, que tem naquele homem uma figura de autoridade.

Raramente tomamos conhecimento das consequências legais dessa brutalidade. Vemos as agressões, mas dificilmente sabemos o destino dado aos agressores, levando à conclusão razoável de que foram perdoados ou sofreram penalidades para constar. Mas nunca ouvimos seus familiares e amigos falando. Pelo visto, ninguém até hoje se interessou em fazer uma reportagem sobre esse assunto. E eu realmente gostaria muito de assistir a algo assim. Se alguém conhecer matéria nesse nicho, por favor me indique.

Daqui, sigo fazendo minha parte. Não levanto a mão para ninguém e ensino minhas crianças que isso não se faz. Mas, naturalmente, temo todos os dias que nossos caminhos se cruzem com o time do outro lado.