sexta-feira, 5 de abril de 2013

"Constitucionalidade" da reincidência

Em uma decisão que não surpreende, face à tradição penal brasileira, o Supremo Tribunal Federal decidiu por unanimidade(1) ontem que a reincidência não viola a Constituição. Para os ministros, é incorreta a alegação de dupla punição pelo fato. Este julgamento era bastante aguardado, porque impacta uma quantidade imensa de casos nos quais se discute a mesma tese.

Em seu voto, o Ministro Marco Aurélio, de quem eu esperava abordagem melhor, considerou perfeitamente justificável impor-se tratamento diferenciado e mais grave a quem cometeu mais de um crime (no contexto específico da reincidência, que é um conceito técnico-legal, mais restrito do que imagina o senso comum)(2). Em seu voto, fortemente utilitarista, alegou:

Está-se diante de fator de discriminação que se mostra razoável, seguindo a ordem natural das coisas(3). Repito que se leva em conta o perfil do réu, percebendo-se a necessidade de maior apenação, consideradas a pena mínima e a máxima do tipo, porque voltou a delinquir apesar da condenação havida, no que esta deveria ser tomada como um alerta, uma advertência maior quanto à necessidade de adoção de postura própria ao homem médio, ao cidadão integrado à vida gregária e solidário aos semelhantes.

O aspecto que desvela o utilitarismo da decisão sob comento é que Marco Aurélio começa seu voto explicando que a reincidência não afeta somente a pena; possui diversas outras consequências, de modo que, a ser declarada a sua inconstitucionalidade, todos esses efeitos seriam expungidos do ordenamento brasileiro. Daí pergunta o ministro, como se a pergunta já fosse a resposta:


Vê-se que a reincidência repercute em diversos institutos penais, compondo consagrado sistema de política criminal de combate à delinquência. Serão todas essas normas inconstitucionais? Sim, a glosa da reincidência como agravante alcançará, por coerência, os demais preceitos, ante a harmonia própria à aplicação e interpretação do Direito.


Em suma, deve-se declarar a reincidência constitucional a fim de que não se percam as disposições de maior repressão no que tange à fixação do regime penitenciário inicial, substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou multa, aplicação da suspensão condicional da pena, prazo de livramento condicional e outros. Ou seja, não é uma questão de ser ou não constitucional e sim de conferir um status jurídico para assegurar a vigência de disposições normativas às quais já estamos acostumados.

Outro fundamento equivocado adotado pelo relator é a tradição (ou coisa que o valha). Para ele, como a reincidência surgiu como agravante no Código Criminal do Império (1830), ela se integrou à, sei lá, cultura jurídico-penal brasileira e por isso devemos tolerá-la. Afirma que não se pode, "a partir da exacerbação do chamado garantismo penal(4), olvidar o sistema(5), desmantelando-o no ponto consagrador da cabível distinção, tratando-se desiguais de formal igual". O raciocínio não foi desenvolvido pelo ministro.

Concordo com o magistrado que a reincidência não viola o princípio da individualização da pena, na medida em que este implica em tratar cada caso de acordo com suas peculiaridades concretas. Mas individualizar é uma técnica e não necessariamente uma atitude substancial. Separar os presos por sexo é uma medida de individualização, que poderia ser explicada por diferentes motivos. Tratar diferenciadamente o reincidente é sem dúvida individualizar a pena. A questão substancial é saber se ela é motivo bastante que justifique a diferença, sopesado o direito penal em seu conjunto.

E o conjunto do direito penal contempla, ainda, o princípio da lesividade, que possui diferentes aspectos, um dos quais tem a ver com a impossibilidade de criminalizar (e seu corolário, impor penas ou outras restrições à liberdade) indivíduos com fundamento em condições pessoais, tais como ser vadio, ser racista ou mesmo ser reincidente. A criminalização deveria ser subordinada exclusivamente a condutas, concretas e demonstradas, tais como atentar contra a incolumidade pública, cercear direitos de minorias por motivos racistas ou cometer novos crimes. Neste caso, o indivíduo seria punido pelos novos crimes que cometesse, e não por seu currículo.

O repúdio ao direito penal de autor é uma exigência da civilização. Há bastante tempo. Num Estado Democrático de Direito a única matriz repressiva admissível é o direito penal de ato, fundado em condutas concretas, definidas por lei como crimes. É neste sentido que, a meu ver, a reincidência é totalmente inaceitável, digam o que disserem. Para ficar bem entendido: não estou propondo clemências. Se a intenção do Sistema é assegurar repressão intensa aos transgressores, pode fazê-lo por meio de penas elevadas, sem precisar recorrer à reincidência. Embora considerando as penas exemplares um mal, como primeira ideia, elas seriam ao menos uma alternativa viável, ao passo que a reincidência não passa pelos crivos elementares da principiologia penal.

Para terminar, recordemos que a Colômbia excluiu a reincidência de seu ordenamento jurídico (Código Penal de 1980). Em 5 de fevereiro deste ano, a Suprema Corte de Justiça da Argentina concluiu julgamento semelhante. A despeito do voto divergente do Ministro Eugenio Raúl Zaffaroni, a decisão daquela corte também foi no sentido de convalidar a reincidência.

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(1) Só havia oito ministros na sessão. Ausentes Teori Zavascki e Celso de Mello, sendo que deste último eu esperaria uma divergência. A corte está com apenas dez membros, porque a presidente Dilma não está nada a fim de preencher a vaga aberta com a aposentadoria de Carlos Ayres Britto.

(2) Ao senso comum, reincidente é toda pessoa que cometeu crime mais de uma vez. Para o direito penal, contudo, somente aquele que delinquiu após ser condenado, por crime anterior, mediante sentença transitada em julgado, é que pode ser considerado como tal (art. 63 do Código Penal).

(3) Especialmente para Sandro Simões, professor de Hermenêutica, e para Ana Cláudia Pinho, também dedicada ao tema, que com certeza vai adorar esta: que tal fundamentar uma decisão judicial na "ordem natural das coisas"?! Como diriam os meus alunos, WTF é "ordem natural das coisas"?!

(4) Eu gostaria muito de saber o que o ministro quis dizer com "garantismo penal", já que o termo é bastante deturpado, inclusive por pessoas que supostamente pretendem valorizá-lo.

(5) E de novo, o apelo à autoridade do Sistema, essa entidade sobrenatural com existência concreta, que preside e domina o campo do direito. Agora a homenagem é para minha querida Bárbara Dias: trata-se da naturalização daquilo que é, na verdade, uma escolha, a ontologização do político.

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