quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Emergências, direito penal e burrice

Tudo como sempre, mas com umas novidades de permeio.

O de sempre: acontece um crime de grave repercussão social, a sociedade chia, os politiqueiros se agitam e logo surge uma proposta para endurecimento das leis penais. A bola da vez é a morte do cinegrafista Santiago Andrade, em serviço, durante manifestação no Rio de Janeiro. Contudo, a proposta imbecil que desejo comentar não surgiu agora, e sim remonta a meados do ano passado, quando o país foi tomado por intensa agitação popular nas ruas, começando com os protestos durante a Copa das Confederações.

Foi quando um dos super-herois da classe média brasileira, José Mariano Beltrame, secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, convocou uma comissão de juristas (Questionamentos 1 e 2: Que sentido foi dado à palavra "juristas"? Quais são as credenciais dessas pessoas cujos nomes sequer foram divulgados?) para elaborar um projeto de lei criminalizando a incitação ou prática de desordem. Esta mais nova pérola da cultura jurídica brasileira está em poder do Ministério da Justiça há três meses, enquanto Beltrame sustenta que, sem leis mais rígidas, a polícia nada pode fazer para... Para quê mesmo?

Dentre as propostas dos "doutos", está a proibição do uso de máscaras durante protestos. E até dentro de casa tenho que escutar que, se o sujeito vai para a rua mascarado, é porque necessariamente está mal intencionado, como se o mundo fosse assim cartesiano e as pessoas não pudessem, apenas, querer se defender de violência policial. Outra proposta, esta correta, é impedir o porte de instrumentos que possam causar lesões, desde que se esclareçam que instrumentos seriam, porque eu posso ferir alguém com uma simples caneta.

Mas, acima de tudo, [questionamento 3] como se pode criminalizar a "desordem", sendo esse um conceito indeterminado? Aliás, é essencialmente um conceito construído por instâncias de poder, que ditam como os subordinados devem se comportar e tudo que esteja fora dessa moldura será desordem. A imprecisão se torna ainda mais nítida quando se propõe um tipo penal consistente na associação "com o fim de praticar desordem, vandalismo ou qualquer tipo de violência". O que é vandalismo? Quais são os tipos de violência? Simples: o que o policial quiser que seja. Ou o governo.

Percebo, logo de saída, a violação ao princípio da taxatividade penal, o que não causa nenhuma surpresa, considerando que se essa é uma estratégia elementar do direito penal simbólico dos nossos tempos, dominado pela ideia das "emergências" (reagir com veemência a acontecimentos graves que supostamente não podem aguardar os efeitos resposta mais branda). Inúmeros criminólogos se dedicam a demonstrar como as emergências são criadas ao bel prazer dos governantes e classes hegemônicas, nunca com boas intenções e se sucedendo no tempo, de acordo com as conveniências.

Outra característica desse modelo de direito penal é o apelo ao suposto tecnicismo e a informação privilegiadas, embora elas não sejam de conhecimento público. No caso do Rio de Janeiro, supostos relatórios sigilosos do setor de inteligência policial indicam o risco de protestos mais violentos ao longo do ano. Pode ser, mas é um chute até que se prove o contrário. Lendas urbanas são habitualmente criadas para justificar os delírios punitivos do poder vigente. Que o diga Hitler.

Beltrame, no entanto, quer não apenas a lei, mas o engajamento de toda a sociedade por sua aprovação. Não lhe faltarão adeptos. Eu, como de praxe, ficarei entre os vencidos. A argumentação que desenvolve é rica em sintomas do nosso tempo, além de apelar para psicologismo infantil:

Diz aí, Beltrame: Se usar máscara é coisa de bandido, por que os
policiais escondem o rosto? Não estão no estrito cumprimento
do dever legal?
"Qual é o grau de tolerância que a sociedade tem com a violência apresentada durante as manifestações? Só para dar um exemplo, a pessoa que foi presa com o artefato já havia sido presa três vezes. As idas à delegacia não foram suficientes para ela repensar seus atos. Ela voltou a praticar crimes."

Sintoma 1: O discurso remete à famosa política de tolerância zero, que conta com inúmeros fãs, embora provavelmente nenhum deles saiba exatamente em que ela implica.

Sintoma 2: No exemplo citado, apela para uma situação dramática, que é mais fácil de provocar reação emocional intensa no público, que assim se convence da necessidade do rigor proposto.

Sintoma 3: A reiteração criminal (não confundir com reincidência, que é um conceito técnico) costuma ser entendida como uma prova inquestionável de personalidade criminosa convicta. O esperto só se esquece que a imputação criminal é um fenômeno externo e que quanto mais uma pessoa é acusada, mais fica vulnerável a novas acusações.

Sintoma 4: A infantilidade de achar que, por ter sido presa, a pessoa poderia "repensar os seus atos", ou seja, ter uma espécie de epifania e se converter em uma pessoa de bem, de acordo com os parâmetros externos. Realmente, uma cela é um lugar muito adequado para elevação moral. As estatísticas de sempre e de todos os lugares estão aí para comprovar isso.

Não me venha com papo de que a desordem está definida pelos danos que causam a terceiros, porque isso é consequência e aparece na proposta como qualificadora.

O que mais me irrita nessa história é que ninguém tentou disfarçar: a ideia do projeto de lei surgiu após os protestos contra a Copa das Confederações. De novo Beltrame, satisfeito em ser lambaio da FIFA:

"As manifestações surgiram no ano passado de uma maneira que nunca havíamos visto. Gente mascarada utilizando pedras, coqueteis Molotov, rojões, foguetes, estilingues incendiários. Temos tentado viver um protesto de cada vez, complementando com informações da nossa inteligência e treinando os policiais. Em função do que temos hoje na lei, não temos condições de manter estas pessoas presas e puni-las, porque os crimes são de menor potencial ofensivo. Temos prendido muita gente, foram cerca de 50 na última quinta-feira, mas todos foram soltos. Fizemos o estudo para propor as mudanças legislativas para evitar que isso ocorra."

"Eu respeito o Ministério da Justiça, mas não posso deixar que as coisas continuem acontecendo aqui, nas minhas costas, na Central do Brasil. A própria Constituição garante o direito de manifestação, mas veda o anonimato e a utilização de armas durante os protestos. Estamos só pedindo para regulamentar algo previsto na Constituição há 30 anos. Precisamos ser rápidos, pois temos a Copa do Mundo à nossa porta."

De saída, alguém informe a Beltrame que a Constituição é de 1988 e, portanto, acabou de fazer 25 anos e não 30. A regra "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato" (CR/1988, art. 5º, IV) deve ser interpretada de maneira sistemática, em confronto com os demais direitos fundamentais, não se podendo interpretar, fora de contexto, que todo uso de máscara em manifestação, por ser anonimato, é conduta vedada de modo absoluto. Quando ao uso de armas, ele não tem que ser "regulamentado": trata-se de prática proibida.

E é assim que vamos levando: tentando corrigir os erros com outros erros, sem os pés na realidade e com muito discurso.

Fonte: http://oglobo.globo.com/rio/beltrame-sugere-leis-mais-rigidas-para-conter-violencia-em-protestos-11567972

E bem a propósito: http://www.conjur.com.br/2014-fev-13/especialistas-alertam-riscos-proposta-tipifica-crime-desordem

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