sábado, 5 de julho de 2014

Violência desportiva

Claro que hoje o país (o país que a mídia insiste em vender como o único e verdadeiro) está de luto e só fala do caso Neymar, que no jogo de ontem sofreu dura entrada de um jogador colombiano (Zuñiga, acho que é o nome) e fraturou uma vértebra, um dano felizmente recuperável, inclusive para que o rapaz volte a suas atividades esportivas.

Na imprensa e sobretudo nas redes sociais, as opiniões se dividem. Uma minoria acredita que o lance foi normal de jogo, como o inimigo público n. 1 do Brasil asseverou, em nota oficial. A maioria, entretanto, fala em ataque intencional, em falta criminosa. Há quem recorra a argumentos técnicos para justificar este ponto de vista.

Não me darei ao trabalho de discutir este ponto, até porque tenho certeza de que a maioria dessas manifestações concluindo por dolo estão permeadas de rancor e incapacidade de raciocínio. Se bem que, considerando que a seleção brasileira é basicamente Neymar e mais uns, nada mais previsível que os adversários tentassem colocar o cara fora de jogo, então admito que a tese de dolo tem, de saída, boa dose de plausibilidade.

O que me traz a esta questão que, em verdade, não me interessa particularmente é a sua abordagem criminal. Afinal, muitos estão pedindo que o jogador colombiano seja preso, além das ameaças de morte que lhe foram assacadas. Como me perguntaram aqui em casa, resolvi escrever.

Por óbvio, dizer se o caso configura crime mesmo exige uma resposta que não tenho e que acabei de assumir não ser de meu interesse procurar: o choque entre os dois atletas foi um acidente próprio de esportes de contato ou houve algum tipo de conduta irregular por parte de Zuñiga?

Respondo, então, por hipótese.

Se a premissa for de que, a despeito da violência, a colisão não denota comportamento antiesportivo de Zuñiga, isto é, foi um lamentável acidente, desses que podem ocorrer mesmo tendo sido respeitadas as regras do futebol, então o caso será de exercício regular de direito e, nessa condição, não existe crime.

De acordo com doutrina antiga e com o Código Penal vigente, a chamada violência desportiva é um dos exemplos clássicos de exercício regular de direito, que exclui a ilicitude da conduta e, por isso, exclui o crime. De acordo com doutrina mais recente e bem elaborada, a violência desportiva exclui a própria tipicidade da conduta (o que chamamos de tipicidade conglobante, porque a prática esportiva é fomentada no interesse da própria sociedade, de modo que somos forçados a tolerar alguns danos). De todo modo, fica excluído o crime.

Em qualquer uma dessas interpretações, contudo, há uma exigência: a de que o comportamento do jogador possa ser considerado como compatível com as regras e as características do esporte no qual foi produzido o dano.

Adotando a premissa contrária, a de que Zuñiga violou as regras do futebol, haveria crime e, obviamente, ele poderia ser processado pela justiça comum brasileira, sem embargo das consequências próprias da tal Justiça Desportiva e dos regulamentos da copa do mundo e da megaultraüberorganizaçãoacimadobemedomal, a FIFA. É mais ou menos como Mike Tyson arrancando um pedaço da orelha do adversário. Se não é boxe, então é crime e dá cadeia, em tese.

Neste caso, teríamos que saber se Zuñiga agiu com dolo (se teve a intenção de ferir o adversário) ou com culpa (se teve a intenção de praticar uma conduta perigosa, ou seja, imprudente, mesmo sem o propósito de ferir o adversário). Só este aspecto pode render debates intermináveis.

Caso se acredite que houve culpa, então teríamos lesão corporal culposa, delito de menor potencial ofensivo e que, portanto, deve ser apenado com medidas que não envolvam prisão, ainda mais em se tratando de réu primário. Só para informar, a pena cominada é de 2 meses a 1 ano de detenção, mas seria necessário substituí-la por alguma restritiva de direitos. Em se tratando de culpa, a gravidade da lesão é considerada apenas para fins de dosagem da pena.

Caso se aposte em dolo, a situação se complica. Afinal, não adiantaria alegar que não houve a intenção de incapacitar a vítima, apenas a de provocar uma lesão leve. O dolo abrange os fins visados pelo agente, os meios e os resultados previstos como prováveis. Havendo dolo de lesionar, portanto, um resultado mais grave do que o esperado estaria, em tese, coberto pela figura do dolo eventual e conduziria às mesmas consequências.

Por conseguinte, Zuñiga seria acusado de lesão corporal grave, caracterizada pela incapacidade para os ocupações habituais por mais de 30 dias, se Neymar realmente ficar mais do que 30 dias no estaleiro. A previsão dos comentaristas esportivos é de 4 semanas, mas vi que os médicos estão falando em 6 a 8 semanas, a depender das respostas físicas do paciente. Então, nesse cenário, essa seria a acusação. A pena seria de 1 a 5 anos e, por se tratar de crime cometido com violência contra pessoa, não caberia a substituição da pena prisional por restritivas de direitos. Supostamente, o agressor poderia conhecer o sistema carcerário brasileiro.

No mais, vale lembrar que, mesmo sendo estrangeiro o acusado, em vista de o fato ter sido praticado em território brasileiro, aplicam-se as leis brasileiras. Assim, é conveniente a Zuñiga que ele vá logo reencontrar a família. Até porque o sistema legal brasileiro é a menor de suas preocupações.

Imagino como será a minha próxima aula de exercício regular de direito, no futuro.

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