sexta-feira, 22 de maio de 2015

Aquela do copo meio cheio, meio vazio

Existe uma metáfora que tenta indicar se você é do tipo otimista ou pessimista: é aquela pergunta se, ao olhar para um copo pela metade, você o vê meio cheio ou meio vazio. O pano de fundo é enfatizar a questão do foco: você classifica o copo de acordo com o que lhe desperta maior atenção. Parece banal, mas tem lógica.

Nos meus longos anos de dinâmicas de grupo, também fui exposto a uma técnica mais matreira e menos inteligente: exibia-se um cartaz branco com um ponto/risco/sujeira no centro e se perguntava o que a pessoa via. O objetivo era induzi-la a se referir ao ponto/risco/sujeira para "surpreendê-la" com um comentário moralizador, do tipo: "Você enxerga apenas o risco e não presta atenção na imensidão de limpeza que existe em redor?"

Nos últimos dois dias, uma tragédia urbana trouxe à baila esta questão. Refiro-me ao caso de Jaime Gold, médico de 55 anos assassinado a facadas enquanto pedalava na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, vitimado por assaltantes adolescentes, mesmo sem reagir à abordagem.

Para um humanista como eu, uma situação dessas seria horrenda em qualquer contexto e não deveria acontecer nunca. Já para um criminólogo como eu, sem olvidar o horror inerente ao desperdício de uma vida humana, não há como ignorar que muitas pessoas são brutalmente assassinadas todos os dias, ganhando atenção apenas dos jornais sanguinolentos que se locupletam do sofrimento alheio, sem qualquer respeito por ele. Mas o caso ganhou repercussão nacional porque a vítima foi um cidadão produtivo, um homem branco, um médico, que se exercitava em um ponto turístico da cidade mais badalada do país. Quando a violência bate à porta da casa grande, surge um escândalo. O mesmo não se diga do genocídio1 diário dos meninos negros (e quase pretos de tão pobres2) por todo o país.

Amplamente divulgado o caso, a reação natural do brasileiro médio foi a de enfatizar a adolescência do latrocida para concluir pela necessidade de se reduzir a maioridade penal no Brasil. Adeptos de movimentos de lei e ordem são sempre assim: reativos, um sintoma de sua baixa capacidade e total aversão à reflexão, notadamente a de longo prazo e permeável ao confronto de visões opostas. O mural da moralidade brasileira, que atende pelo nome de Facebook, foi-se enchendo de manifestações nesse sentido.

De ontem para hoje, contudo, as postagens que proliferaram tinham como mote o contundente depoimento de Márcia Amil, ex-esposa e amiga de Gold, que se declarou frontalmente contrária à redução da maioridade penal e, de quebra, ainda lembrou os não-médicos assassinados todos os dias além da Zona Sul (leia aqui). Um regozijo para os meus colegas avessos ao punitivismo irracional.

Em consequência, meu mural no Facebook hoje divide as pessoas entre aquelas que replicam manchetes sobre o crime em si e aquelas que repercutem a expressa contrariedade de Amil à redução da maioridade penal. Tudo sintoma. Os primeiros, claro, agem como se dessem a todos nós uma advertência: Amanhã pode ser você. Tema e force as autoridades a combater o crime, enrijecendo a legislação penal, que é o único (ou o melhor) jeito.

A posição de Amil não surpreende. A novelista Glória Perez, que teve a filha Daniella assassinada em 1992, um dos casos mais célebres da literatura criminal brasileira, também se manifestou publicamente contra a pena de morte. E era uma mãe falando, alguém que teve o poder de estar à frente de uma campanha para arrecadar 1,3 milhão de assinaturas em diferentes Estados do país, gerando o primeiro projeto de lei de iniciativa popular a se tornar lei efetiva, que segue sendo o único em matéria penal (veja aqui). A Lei n. 8.930, de 6.9.1994, entrou em vigor apenas um ano e oito meses após o crime.

A atitude de mulheres como Amil e Perez desvela algo em que tenho pensado muito, à medida que avançam os meus anos de docência e vejo muitos de meus ex-alunos se enraizando na sopa geral do clamor por maior punição: eu não quero que crimes brutais, comigo ou com estranhos, inspirem em mim a irracionalidade punitiva porque eu não quero que a maldade, notadamente a maldade alheia, passe a me definir como ser humano. Eu quero ser a pessoa que eu mesmo desejo ser, de acordo com as minhas próprias possibilidades existenciais. Quero resguardar o meu poder de escolha em algo cuja importância não tem paralelo com nada mais: a compreensão que temos de nós mesmos. Se matam alguém que amo e eu passo a defender a pena de morte e outros desvarios, que antes repudiava, a maldade venceu. Alguém decidiu por mim.

Termino estas breves e frouxas reflexões lembrando uma particularidade científica, que provavelmente passa despercebida pela maioria. Se quisermos, ela também pode inspirar metáforas. Trata-se de uma particularidade capaz de provar que o copo meio cheio, meio vazio, na verdade nos enseja um falso dilema, porque o copo sempre está completamente cheio, a menos que estivéssemos no vácuo. Mas no vácuo não sobreviveríamos.

Pessimista convicto, eu não sei se esse detalhe é capaz de levar à vitória os otimistas, mas provavelmente a vida como é, a natureza, os fatos, tudo isso realmente tem a capacidade de nos ensinar alguma coisa. Resta saber se queremos ver as coisas como são ou se preferimos nos concentrar nas aparências.

_________________________________
1 O genocídio constitui uma prática de Estado, clandestina porém real e deliberada, segundo denunciam as criminologias críticas, sendo uma questão particularmente central na obra de Eugenio Raúl Zaffaroni.

2 Para quem não sabe, esta expressão foi extraída da canção "Haiti", de Caetano Veloso, gravada por ele e Gilberto Gil.

Nenhum comentário: