quarta-feira, 6 de maio de 2015

Qual o propósito?

Dia desses, eu me preparava para uma aula em que faria uma contextualização acerca de crimes sexuais e mencionei a minha esposa que abordaria a questão das cantadas de rua que as mulheres sofrem. Ela me sugeriu, não sei se brincando ou a sério, que exibisse o vídeo "Cantada", do Porta dos Fundos. Apesar de ver relação com o tema da aula, nem cogitei de fazer a exibição, face ao palavreado chulo do esquete (aqui o vídeo). Escolado, sei que na hora as pessoas riem, mas é melhor não dar margem a posteriores melindres.

Recordei-me disto ao tomar conhecimento de que, segundo entendera a princípio, uma professora teria dado um poema erótico para seus alunos da 5ª série, em uma escola municipal de Santa Luzia, região metropolitana de Belo Horizonte. Lendo a matéria, descobri que, na verdade, o poema foi dado pela vice-diretora, em ocasião em que a professora da turma havia faltado. A notícia, exígua, não fornece maiores informações, então estou supondo que, diante da ausência da professora, a vice-diretora entrou na turma para suprir uma emergência e, portanto, tomou uma decisão sem planejamento. Foi no impulso ou, até, tentou causar algum impacto. O fato é que, agora, vai responder a um processo disciplinar e pode sofrer uma punição, em tese, até mesmo de demissão.

Não é a primeira vez que profissionais da educação se envolvem em confusão porque adotaram, em sala de aula, algum recurso que remete ao sexo. O meu comentário original seria no sentido de que não vejo mal, honestamente, nesse tipo de expediente, assim como não vejo mal em utilizar humor, expor imagens chocantes (sou de professor de direito penal, ora!), cantar, apresentar performances, etc. O problema não é o recurso, mas a finalidade a que se destina. Se existe uma finalidade pedagógica clara e refletida, se o educador, de boa-fé, supõe que pode favorecer algum conteúdo ou habilidade com certa estratégia, não vejo mal em seu emprego. Mesmo que, eventualmente, estejamos falando de crianças.

Entendam, por favor, que estou longe de ser um professor permissivo. Eu não usaria um poema falando de "pau" e "xota" para crianças de 10, 11 anos. Assim como não quis expor meus alunos adultos aos tabuísmos de um vídeo de humor (que, provavelmente, eles conhecem, assim como inúmeros outros tão ou mais pornofônicos). Assim como não apresento imagens chocantes em minhas aulas, mesmo havendo alguma lógica nisso, porque sei que fere a sensibilidade de muitos alunos e qualquer proveito informativo a ser extraído disso eu poderia obter usando outra estratégia.

Meu objetivo original para esta postagem, contudo, perdeu-se. Agora estou pensando que a vice-diretora tomou essa atitude sem um critério razoável e, com isso, acabou se expondo às críticas dos pais. Sempre há pais ultramoralistas, ao menos quando é para criticar os outros. A escola não pode falhar, em nenhuma medida, no processo de educação que a família brasileira sistematicamente lhe transfere de forma integral.

Isto nos remete, contudo, a uma outra questão: as pessoas continuam, em 2015, a tratar o sexo com a mentalidade da Idade Média. Ele é sujo, pecaminoso e devemos fingir que não faz parte de nossas vidas. Quando ele aparece na escola, então, é um Deus nos acuda. Mas será que isso realmente se justifica?

Um pouco acima da faixa etária das crianças que leram o tal poema, outro dia, aqui em Belém, alunos de uma escola particular gravaram um videozinho usando o aplicativo para smartphone Dubsmash, dublando um funk com letra tosca e sexual (perdoem o pleonasmo) no qual se diz que "a novinha" quer pau. Enquanto o moleque imberbe dizia "pau, ela quer pau", a coleguinha se abaixava como se fosse abocanhar-lhe o membro que daqui a mais alguns anos será efetivamente viril. Degradante, a meu ver, mas real. A escola brasileira quer jogar o que para baixo do tapete?

Penso que é mais interessante colocar o sexo na agenda das instituições de ensino e tentar usar o espaço da escola, cenário das relações horizontais que, ao longo da vida, tornam-se mais importantes para o indivíduo do que as verticais, para falar de consequências, de amor-próprio, de responsabilidade. Nesse sentido, até mesmo o poema "Ciuminho básico" poderia ensejar reflexões, tais como você acha saudável o tipo de relação sugerida no poema?

Por conseguinte, acho que as famílias estão erradas com o estardalhaço. E a escola está errada por se acovardar diante das relações clientelistas que hoje presidem o já complicado trabalho do educador.

No mais, minha mente contrária a desvarios punitivistas ainda lastima que a profissional esteja ameaçada até de demissão, ao menos em tese, quando a responsabilização, se houver (não estou certo nem de que ela mereça uma punição), deve levar em conta uma série de fatores, inclusive a condução da pessoa no trabalho até aqui e as consequências reais de seus atos. Será que alguém perguntou às crianças se elas se sentiram ofendidas? Ou foram somente os pais, os mesmos que deixam os mesmos filhos vendo sexo implícito na novela e fazem vista grossa aos filmes, revistas e à navegação na internet?

Concluo dizendo que achei o poema interessante. Não bonito, não instigante, mas interessante. No estilo, prefiro Elisa Lucinda. E realmente não tenho problema com palavrões, que falo quase o tempo todo. Já publiquei aqui no blog, inclusive, o irreverente "Soneto do caju", do meu poeta favorito, Vinícius de Morais. Como disse antes, tudo é uma questão de propósito. Especialmente se há crianças por perto.

Ciuminho básico (Ana Elisa Ribeiro)

escuta
calado
a proposta rude
deste meu
ciúme:
vou cercar tua boca
com arame farpado
pôr cerca elétrica
ao redor dos braços
na envergadura
pra bloquear o abraço
vou serrar teus sorrisos
deixar apenas os sisos
esculhambar com teus olhos
furá-los com farpas
queimar os cabelos
no pau acendo uma tocha
que se apague apenas
ao sinal da minha xota
finco no cu uma placa
"não há vagas, vagabundas"
na bunda ponho uma cerca
proíbo os arrepios
exceto os de medo
e marco no lombo, a brasa,
a impressão única do meu dedo.

PS - O resultado de suscitar o tema do assédio de rua, na aula, por si só vale uma postagem.

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