terça-feira, 15 de setembro de 2015

Impopulares

Aguardadas com grande preocupação, as medidas do governo federal para tentar reorganizar as finanças do país foram anunciadas ontem. Como esperado, passam por aumento de impostos, cortes de investimentos em programas sociais e o tal de arrocho salarial, ao menos para servidores públicos. Mas gostaria de me concentrar em apenas uma dessas medidas que, sintomaticamente, está provocando furor ao meu redor. Refiro-me à suspensão de concursos públicos.

Não é de hoje que o brasileiro se converteu em um concurseiro convicto. Ao menos para alguém como eu, que vive em ambiente acadêmico, fica a sensação de que fazer concurso público, em busca da tão decantada estabilidade financeira, é uma destinação natural do ser humano, algo escrito nas estrelas ou talvez no código genético.Quando algum aluno me diz que pretende ser advogado, eu o elogio, porque é raro. E o país precisa de bons advogados.

Agora eu parto para considerações que, talvez, façam de mim alguém tão impopular quanto as medidas do governo.

Eu considero um erro o povo brasileiro achar que a solução para os seus problemas é se pendurar no Estado, esse paquiderme faminto, improdutivo e equivocado. Naturalmente, não adoto o discurso de Estado mínimo à moda neoliberal, mas daí a achar que o serviço público deve ser a solução para o problema de geração de emprego e renda vai uma distância abissal. O trabalho em âmbito estatal deveria ser encarado mais como meio, não como o fim a ser alcançado.

A primeira vez que me preocupei com isso foi quando ouvi falar da tal "Lei Camata", no caso, a Lei Complementar n. 82, de 27.3.1995, que regulamentou o art. 169 da Constituição de 1988, para disciplinar os limites de despesas com funcionalismo público. Consoante essa lei. a União, os Estados e os Municípios não poderiam gastar, com pessoal, mais do que 60% de suas receitas correntes (aqui o texto dessa lei, para quem quiser investigar as minúcias). Posteriormente, vieram a lume as Leis Complementares n. 96, de 1999, e 101, de 2000 (esta última cognominada Lei de Responsabilidade Fiscal).

Do alto de minha ignorância sobre política, economia, orçamento público e tudo o mais, considerei um absurdo que 60% (60%!!!) dos recursos disponíveis em um orçamento fossem destinados ao pagamento de salários e penduricalhos de toda ordem. Em uma matemática elementar, parece-me, o Estado arrecada para pagar essas despesas, abrindo mão, conscientemente, de suas outras e mais importantes missões. Afinal, restam apenas 40% de recursos para todo o resto, notadamente para os investimentos que poderiam fazer o país se desenvolver de verdade (por óbvio, repudio a noção de desenvolvimento como crescimento econômico, apenas).

Assim, com a autoridade que me era conferida pelos meus 19 anos, eu pensava que o Estado deveria aumentar a eficiência do serviço público, para fazer mais coisas com menos pessoal, e promover os investimentos necessários, em todos os setores, a fim de que os brasileiros pudessem encontrar trabalho nas diferentes áreas disponíveis. Desnecessário dizer que, duas décadas depois, não aconteceu o que eu pensava e o gargalo se estreitou ainda mais. Não apenas o organograma estatal inchou como a sonhada eficiência acabou apenas no texto da Constituição, porém não na realidade. Não fossem os benefícios da tecnologia, teríamos chegado ao colapso. E um número crescente de brasileiros segue com seu foco voltado para ser remunerado pelo contribuinte.

Segue-se outra ideia, ainda mais impopular: hoje, sou contrário à estabilidade no serviço público. Compreendo a sua inclusão na Constituição de 1988, por causa das perseguições perpetradas durante a ditadura militar. Naquele momento histórico, essa proteção fazia sentido. Hoje, tenho severas dúvidas. Estabilidade pode ser mais útil a quem pretende se acomodar do que a algum fim nobre. Conheço várias pessoas que não se pejam de admitir que desejam um carguinho para, enfim, gozar a vida sem preocupações. Passado o estágio probatório, dizem, é só apertar o botão vermelho. Um propósito de vida nada edificante, que muito explica sobre o serviço público brasileiro.

Enfim, eu realmente acho que não deveria mais haver estabilidade no serviço público. Todo servidor deveria justificar cotidianamente o seu valor para o Estado, assim como, na iniciativa privada, precisamos convencer o empregador de que somos interessantes para a empresa. Isso certamente forçaria a mudança de algumas práticas. Mas admito que esta não é uma opinião integralmente formada. Posso ser convencido do contrário, mediante bons argumentos. Decerto, por "bom argumento" não vale queres acabar com o bem-bom justamente agora que chegou a minha vez?

No mais, para a informação dos meus críticos, ressalto que ainda existe em mim um leve desejo de ser defensor público, porque me encanta essa função. Trata-se do único concurso que ainda faria. No mais, o universo dos concursos realmente não é para mim. Mas não critico quem está na batalha, não. O problema não é individual, e sim de concepção do Estado.

2 comentários:

Daniel Scort disse...

Existem pontos nevrálgicos que são difíceis até de pensar. Como seria o ingresso no serviço público? E por incrível que pareça, o nosso país tem menos servidores proporcionalmente em relação a população do que vários outros países, segundo estudos do ipea e da fgv... Para ilustrar, nos EUA e seu quase libertarianismo a la Nozick, 15% da população são empregados pelo estado... Na verdade o número de servidores caiu em relação a população por aqui, era de 12% em 95 e agora é aproximadamente 10,5%. Quanto a estabilidade, concordo em parte com que o sr disse, ela realmente deveria ser repensada, reformulada, mas a tal da eficiência é algo bem complicado de medir, ainda mais se falando de serviço público (recomendo o contato com a obra do prof dr Aragon Érico Dasso Júnior, uma das sumidades em administração pública do Brasil, atualmente professor da UFRGS, que tive o prazer de ser meu professor na especialização). O que acontece, no meu ver, é que: 1) a escalada da procura pelos concursos aconteceu junto com o aumento do acesso às mídias pela população, gerando uma superexposição; 2) o aumento do interesse fez brilhar os olhos de quem vende ensino voltado para este nicho, fazendo com que eles explorassem a mídia 3) a escolaridade aumentou e com ela o esclarecimento quanto ao trabalho, e, uma vez que as pessoas viram que as relações empresa-empregado eram (e sempre serão) no sentido de explorar a mão-de-obra ao máximo, tentam sair desta situação (não que o estado não explore o seu trabalhador, mas explora menos diríamos assim) 4) o número de vagas nos últimos anos aumentou em todas as esferas da adm púb, pela aposentadoria dos antigos servidores, pelo aumento em si da máquina pública e também pela tentativa de reposição, principalmente na esfera federal, do desmonte criado pelos oito anos do governo fhc - antigamente pouco se falava de concursos públicos, por que? em uma rápida busca veja a quantidade da certames nos oito anos nefastos do ex-professor que se aposentou aos 37 anos e que era - tcharam! - servidor público! Mais um ponto, para ilustrar: existe uma parcela grande de pessoas novas que está abandonando (!) altos cargos conquistados através de aprovação pela iniciativa privada pois nela ganham muito mais. O que vemos é que para cargos de nível médio o estado remunera muito bem seus servidores, porém os postos de nível superior não acompanham a mesma lógica (isso com raras exceções obviamente). Um engenheiro civil da ufpa ganha seus r$ 4000 aproximadamente no início de carreira (vide edital recente no sitio da ufpa), e um engenheiro em uma empresa privada (contratado como engenheiro mesmo) ganha seguramente mais, uma vez que no mínimo ele deve receber o piso da categoria assegurado pelo CREA, de 8,5 salários mínimos. UFA! me alonguei demais em minhas considerações, parabéns pelo blog, que acompanho há muitos anos, saúde para a família e só. Abraço!

Yúdice Andrade disse...

Caro Daniel, muito obrigado por suas considerações. Embora questões ligadas a administração, seja pública ou privada, não sejam nem de longe a minha praia, acho extremamente plausível o que você afirmou.
É angustiante pensar que a relação entre servidores públicos e população diminuiu e nem assim conseguimos qualquer avanço em qualidade. O pouco que avançamos nos últimos anos se deveu mais, penso, aos recursos tecnológicos. Hoje, podemos ter acesso a documentos sem ter que implorá-los a servidores, temos processos eletrônicos, cartórios e delegacias virtuais, etc. Isso ajudou muito, mas de modo insuficiente.
Incomoda-me sobremaneira a falta de compromisso com a qualidade do serviço, decorrente da inclinação do servidor de achar que, uma vez estabilizado, o cargo é dele e ele pode tudo, inclusive fazer nada ou ser ineficiente. Conheço gente que declara abertamente ser esse o seu projeto de vida. E por isso falo em repensar a estabilidade.
Mas o problema é bem mais abaixo. As pessoas realmente precisam acreditar no trabalho fora do serviço público, ainda que isso exija ausência de estabilidade. De que têm medo, afinal? De terem que provar, todo dia, que merecem o emprego? Não consigo digerir a ideia de que o mundo do trabalho, para tantos, seja composto apenas por benefícios, praticamente sem ônus.
Enfim, há muito a repensar.
Grato pela gentileza com este fragilizado blog. Volte sempre.