quarta-feira, 31 de agosto de 2016

A caminho do perdão?

Conforme disseram a autora e o diretor artístico da série Justiça, no vídeo mencionado na primeira postagem que fiz sobre o programa, a produção não versa sobre leis, crimes e tribunais, mas sobre dilemas éticos. Portanto, a turma do Direito precisa conter um pouco suas expectativas e aceitar que, à medida que as tramas avançam, a novela pode substituir o laboratório criminológico, sem deixar de ser campo propício a importantes reflexões.

Se isso ocorrer, minhas resenhas ficarão comprometidas, porque não sou crítico de TV. Mas seguirei aventurando em relação ao capítulo 5 (segundo de Elisa e Vicente). O criminólogo em mim encontrou alguns pontos que merecem atenção.

A desambientação.

Um dos temas mais recorrentes para quem se interessa pela questão penitenciária é o da prisonização, processo psicológico de enfraquecimento da capacidade de interação com o mundo real e de progressiva assimilação do modo de vida carcerária. Trata-se de uma consequência inevitável da colocação do indivíduo em um ambiente absolutamente antinatural e hostil, no qual a pessoa substitui as suas aspirações de vida por outras, muito mais elementares, às vezes ligadas à própria subsistência (Zaffaroni).

Trata-se de um processo de brutalização da pessoa mas, ao mesmo tempo, também é uma domesticação, porque a isso se destina a prisão desde a sua gênese: dobrar o espírito do rebelde e obrigá-lo a assumir um padrão de conduta desejado pelo poder que mandou executar a pena.

Michel Foucault (Microfísica do poder; Vigiar e punir) nos fala sobre o isomorfismo reformista e sobre a ortopedia moral, técnicas utilizadas na sociedade disciplinar, e particularmente nas instituições totais, para submeter o corpo e a mente do preso à aceitação de sua condição de força de trabalho explorada, no contexto das mudanças econômicas do século XVIII. Quem se interessar pelo tema encontrará abordagens ainda mais detalhadas e específicas sobre a relação entre a prisão e as novas relações de produção capitalistas nas obras obrigatórias de Georg Rusche e Otto Kirchheimer (Punição e estrutura social) e de Dario Melossi e Massimo Pavarini (Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário - séculos XVI-XIX), ambas publicadas pela Editora Revan.

Os efeitos da prisonização são vistos em Vicente quando, em casa, diz não saber o lugar de nada, mas sobretudo quando alega que sair da prisão é pior do que entrar. Retornar ao mundo exterior é difícil porque se perdeu o traquejo para fazer as coisas mais simples, espontâneas e até automáticas para quem nunca foi preso. No caso de Vicente, há um componente grave atuando: o remorso. Neste episódio, descobrimos que ele tentou se matar mais de uma vez (a tal característica dos verdadeiros passionais, mencionada na resenha do capítulo 1) e que foi em uma internação hospitalar que conheceu a mãe de sua filha, nascida quando ainda cumpria pena.

Mas Vicente está empenhado em uma cruzada pelo perdão de Elisa. Escutei uma crítica sobre ele estar fazendo isso por si mesmo. Respondo: óbvio. Não é isso que fazemos? Tentamos resolver as nossas angústias? Aliás, penso que é somente isso que podemos fazer. Até podemos ajudar os outros com sinceridade mas, como diria Zeca Baleiro, "quem saberá a cura do meu coração senão eu?" Vicente não pode curar Elisa. Essa tarefa compete a ela mesma. E isso nos leva ao outro ponto.

Haverá reconciliação?

O episódio termina com Elisa e Vicente se encontrando por acaso no túmulo de Isabela. Antes, já houvera um momento de tensão entre os dois na faculdade onde ela leciona (agora sei que ela é "Ph.D em Filosofia do Direito"), graças a uma intensa pressão que Heitor está fazendo, alegadamente pelo bem da namorada.

Vicente se desculpa por estar ali e se prepara para sair. Elisa chora e diz que sente muita saudade da filha. Certas pessoas reagem com sentimentos ambíguos diante dos assassinos de seus entes queridos: há o ódio, a repulsa, mas há também uma estranha necessidade de interação. Ao ver a cena, especulei: essa estória terminará com esses dois se abraçando. Pode parecer apenas um recurso dramático para a narrativa, porém há um argumento criminológico associável a essa eventual opção de roteiro.

Se a autora estudou o nosso campo para construir o projeto, é provável que se tenha debruçado sobre o tema da justiça restaurativa. Howard Zehr, um dos maiores estudiosos do tema, explica:

"Se o crime é um dano, uma lesão, o que é a justiça? Novamente, valendo-nos da visão consignada na Bíblia, se o crime machuca as pessoas, a justiça deveria acertar tudo para as pessoas e entre elas. Quando um mal é cometido, a questão central não deveria ser 'O que devemos fazer ao ofensor?', ou 'O que o ofensor merece?', mas sim 'O que podemos fazer para corrigir a situação?'

Em vez de definir a justiça como retribuição, nós a definiremos como restauração. Se o crime é um ato lesivo, a justiça significará reparar a lesão e promover a cura. Atos de restauração ― ao invés de mais violação ― deveriam contrabalançar o dano advindo do crime. É impossível garantir recuperação total, evidentemente, mas a verdadeira justiça teria como objetivo oferecer um contexto no qual esse processo pode começar."
(ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. 
São Paulo: Palas Athena, 2008, pp. 175-176)

A justiça restaurativa é bastante controversa e aqui não é o espaço para aprofundarmos a questão. Contudo, ela avança entre os estudiosos do campo penal e também entre as instituições. Em 1º de agosto último, entrou em vigor no país a Resolução n. 225, de 31.5.2016, do Conselho Nacional de Justiça, que estabelece os procedimentos para implantação da justiça restaurativa no poder judiciário brasileiro, em respeito às recomendações da Organização das Nações Unidas. Já existem experiências em andamento, inclusive aqui em Belém.

Preocupa-me que uma série tão bem construída siga pelo batido e decepcionante caminho da vingança. Elisa quer se vingar de Vicente; Mayara quer se vingar de Kelly; Rose e Débora querem se vingar do estuprador; Maurício quer se vingar de Antenor. Em todas as tramas, o apelo cafona está presente e é provável que se consume, mas a autora mostraria grandeza e sairia da vala comum ficcional se aproveitasse ao menos o enredo da segunda-feira para uma solução diferente, valendo-se do que há de revolucionário na justiça restaurativa: a substituição do paradigma retributivo (a vingança, a necessidade de retribuir o mal do crime com o mal da pena), único que funciona na cabeça da esmagadora maioria das pessoas, por outro que aposte na reconstrução das vidas, em benefício das próprias vítimas.

Seria no mínimo inspirador ver uma abordagem dessas no horário nobre da emissora de maior audiência do país.

Post scriptum.

É uma bobagem, mas preciso dizer: Vicente sai da prisão após sete anos, sem dinheiro, com uma família para conhecer, psicologicamente perturbado e, dois dias depois, já está na faculdade, para iniciar um curso de Direito? Entre uma tentativa de suicídio e outra, ele estudou para o vestibular, fez prova, matrícula, etc.?

Uma coisa que não se salva nesta minissérie e o elemento tempo.

"Não creio em santos e poetas
Perguntei tanto e ninguém nunca respondeu"

Fontes
  • http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/82505-resolucao-sobre-justica-restaurativa-e-publicada-no-diario-de-justica
  • http://www.cnj.jus.br/images/atos_normativos/resolucao/resolucao_225_31052016_02062016161414.pdf

Antecedentes criminais
  • Sobre a série: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/a-justica-chega-ao-mainstream.html
  • Capítulo 1: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/elisa-e-vicente-justica-como-deturpacao.html
  • Capítulo 2: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/todos-culpados-ate-que-se-prove-nada.html
  • Capítulo 3: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/justica-no-xadrez-das-cores.html
  • Capítulo 4: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/eu-que-te-amo-tanto-ponto-de-te-matar.html

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