sábado, 27 de agosto de 2016

Justiça no xadrez das cores

O último trabalho feito pela adorável Míriam Pires (a inesquecível dona Milú, da novela Tieta) foi um curtametragem chamado O xadrez das cores (dir. Marco Schiavon, 2004). Ela interpretava Maria, uma idosa doente que morava sozinha e recebia cuidados de um sobrinho. Este, cansado da rotina de despedir empregadas por causa do péssimo temperamento da tia, e precisando trabalhar, faz uma nova contratação e diz à tia que ela precisará colaborar. A nova empregada é Cida (Zezeh Barbosa), negra, o que dispara um processo grave de assédio moral de cunho racista.

Não deixe de ver o comovente curta:
http://portacurtas.org.br/filme/?name=o_xadrez_das_cores
(também tem no YouTube)
A tocante narrativa  que explora como metáfora o jogo de xadrez, em que temos dois exércitos em confronto, sendo um branco e um preto (e o branco tem a vantagem de sempre iniciar a partida)  evolui do preconceito desbragado, respondido com paciência e dedicação, para uma relação de amizade. Mas ali era o plano individual. No plano estatal, não há qualquer inclinação à amizade ou sequer à razoabilidade. Muito ao contrário, está claro como nunca que existe uma política subterrânea de massacre (a expressão é de Zaffaroni) da juventude pobre, notadamente da juventude negra  o que, na realidade brasileira, dá no mesmo.

A terceira trama de Justiça explora essa realidade. E, mais uma vez, o crime é o de tráfico de drogas, que atualmente gera uma das maiores demandas de criminalização no país. Há traficantes por todos os lados, segundo parece. Mas, curiosamente, eles quase sempre têm a pele escura.

No campo penal, a política de drogas figura em qualquer ranking de temas centrais. De um lado, a política proibicionista radical, não à toa chamada de "guerra às drogas" (a imagem bélica ajuda a criar a percepção de um inimigo do Estado, que precisa ser destruído a todo custo, não sendo razoável reconhecer-lhe direitos), de inspiração estadunidense. Em seu O inimigo no direito penal, Zaffaroni leciona que o fim do comunismo forçou os americanos a inventar um novo inimigo figadal, o narcotráfico. O posto seria perdido em 2001, mediante substituição pelo terrorismo, mas a "guerra às drogas" nunca deixou de ser uma política pública intensa e uma promissora plataforma eleitoral para muitos. Bem sucedida, foi importada para países como o Brasil, onde, como denunciam inúmeros estudiosos, provoca muito mais mortes do que o próprio consumo das drogas e suas demais mazelas. Em nossa história recente, é bandeira levantada por candidatos muito à direita, notadamente os da "Bancada da Bala", uma das confrarias criminosas abancadas no Congresso Nacional, cada vez mais inflada por gente oriunda das agências punitivas.

Nossa minissérie explora a extrema vulnerabilidade dos negros à criminalização na conta do tráfico. E o faz de maneira muito incisiva. O racismo em Justiça é escancarado em um nível quase didático ― seja na recepcionista do restaurante que alega, às 22h, estarem reservadas todas aquelas mesas vazias; seja na triagem do policial militar, que separa negros para fins de revista pessoal e brancos para liberação. Chega ao ponto de chamar a "branquinha" para ir para casa, pois ela parece de bem. Mas dadas as ressalvas que estão sendo feitas a estas resenhas, Deus me livre afirmar que o racismo não se exprime exatamente com essa rudeza panfletária. Não sou negro; não sei como é. Deixo essa análise a quem sente na pele.

Necessário ressaltar que, ao contrário de Fátima, que foi vítima de uma armação cruel, a protagonista Rose (Jéssica Ellen) se expôs à sanha estatal. Estava com sua "irmã" Débora (Luísa Arraes) em uma festa na praia quando as duas resolveram fumar maconha e, para complicar, dispuseram-se a comprar para os amigos. Assim, estavam com papelotes da droga escondidos na roupa. A branca Débora foi dispensada sem mais; a negra Rose foi revistada. Cumpriu-se a criminalização secundária por estereotipização: criminoso é quem o sistema punitivo alcançou, porque desejou fazê-lo, a partir de certas características físicas ou sociais.

A política brasileira de guerra às drogas se reflete em uma legislação histérica. O art. 33 da Lei de Drogas tipifica o crime de tráfico usando 18 verbos diferentes, indicativo de que o legislador não queria deixar passar nada. Por pouco não tipificou a conduta de pensar em drogas. Mas tipificou as condutas de adquirirtrazer consigo, entregar a consumo ou fornecer, ainda que gratuitamente. Rose e Débora compraram maconha para consumo próprio, mas também para repassar aos amigos. À interpretação literal, incorreram no tipo. Simples assim. Para aqueles que não enxergam nela a condição de traficante, respondo dizendo que é exatamente esse um dos problemas da política proibicionista radical que temos.

Rose, assim, nos primeiros minutos de seus 18 anos e portanto já neoimputável, foi presa durante a comemoração de seu aniversário e de sua aprovação no vestibular. Horas antes, em uma cena comovente, escutara a sua mãe, negra pobre e sem instrução, empregada doméstica na casa de Débora, dizer que ela estava fazendo história. Claro: seria a primeira pessoa naquela família a chegar a uma universidade, oportunidade que surgiu para  muitos na última década, consoante a imprensa divulga de vez em quando (http://f5.folha.uol.com.br/humanos/1073080-ex-analfabeto-deixou-a-lavoura-de-cafe-e-virou-estudante-de-medicina.shtml; http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2012/12/filho-de-agricultor-se-forma-em-medicina-e-enche-familia-de-orgulho.html; http://educacao.uol.com.br/noticias/2015/09/14/filho-de-pedreiro-e-catadora-se-forma-em-direito-e-homenageia-pais-no-pi.htm; http://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2016/08/nada-e-impossivel-diz-jovem-que-saiu-da-zona-rural-para-se-tornar-medico.html). Nem era somente a história daquela família, mas do país como um todo.

Presa, perdeu a oportunidade de desenvolvimento pessoal. Mesmo fora da prisão, o estigma do egresso há de acompanhá-la e começa na rejeição do marido de Débora. A mãe morreu e ela está só no mundo. Está calma e parece ter assimilado a lição materna: "Tu não é bandida. Não deixa esse lugar destruir o teu coração!" Mas ela ainda nem começou as suas novas lutas.

Curiosamente, esta trama é a única que não construiu devagar o perfil dos personagens. Ao contrário das três outras introduções, já ao final do primeiro bloco os eventos estavam narrados e, com a pena cumprida, Rose voltou à liberdade. Surge então uma segunda trama (o que ainda não ocorreu nas estórias paralelas): Débora está infeliz porque não consegue engravidar, embora ela e o marido o desejem. Sequelas de um estupro.

Nesse momento, Rose começa a mostrar que ninguém resiste ao ambiente da prisão. Diz que a polícia não prende porque não quer. E diante da afirmação de Débora, de que encontrar o estuprador é o que mais quer na vida, promete ajudá-la nessa missão. Minha ideia imediata: Rose vai buscar contatos feitos na prisão para punir o estuprador. Sinais de justiçamento a caminho. E o público vai gostar disso. Talvez a prisão tenha mesmo destruído o coração da moça. Mas não é exatamente isso que fazem as prisões? E nós continuamos apostando nela mais do que em qualquer outra coisa, ignorando isso de propósito.

Ao fim e ao cabo, talvez esse terceiro enredo não seja exatamente sobre racismo. Nem exatamente sobre Rose. Talvez a personagem negra tenha dado azar até nisso. Estaremos diante de um sintoma? Só continuando a assistir para saber.

Post scriptum. Por questões de estilo, todos os protagonistas da série ficaram presos por sete anos. No caso de Rose, uma pena muito elevada. O tráfico enseja reclusão de 5 a 15 anos, mas pode haver redução de um sexto a dois terços se o réu for primário e tiver bons antecedentes, bem como não se dedique a outras atividades criminosas. Rose também poderia ser enquadrada na forma "privilegiada" do crime, pois ofereceu droga eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoas de seu relacionamento, para juntos consumirem. A pena é de 6 meses a 1 ano. Alguém decidiu ser muito duro com ela. Na vida real, não seria de surpreender.

Antecedentes criminais
  • Sobre a série: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/a-justica-chega-ao-mainstream.html
  • Capítulo 1: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/elisa-e-vicente-justica-como-deturpacao.html
  • Capítulo 2: http://yudicerandol.blogspot.com.br/2016/08/todos-culpados-ate-que-se-prove-nada.html

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