sábado, 13 de agosto de 2016

Sobre Renan e as resistências necessárias

Na noite da última quinta-feira ocorreu a cerimônia de colação de grau das turmas de meio de ano do CESUPA. Estando em sala de aula, não pude comparecer. Na verdade, não cheguei a lecionar para as turmas que se formaram (o que foi uma pena para mim, a julgar pelo que dizem meus colegas). No entanto, eu tinha ao menos um grande motivo para estar lá. Começarei com a postagem dele no Facebook:


Vários anos atrás, em uma cerimônia de colação de grau, vi o desfile dos alunos indo receber o diploma junto à mesa condutora dos trabalhos, e de repente me deu um insight: não temos alunos negros no curso! Senti-me mal, porque passei a vida cercado por pessoas com diferentes condições de vulnerabilidade e eu sabia que lhes faltavam oportunidades de crescimento, por mais que o desejassem.

Estando às vésperas de completar 17 anos de docência, posso lhes afiançar que, com o tempo, mormente na última década, vi o perfil do curso mudar ― ainda que não tão amplamente quanto deveria, como o depoimento de Renan desvela. O número de alunos negros, pobres (na verdade, neste país, uma coisa leva à outra), trabalhadores, bolsistas e congêneres aumentou. Vocês não têm ideia do tipo de transformação que isso representa.

Você deve estar pensando que mudou apenas a paleta de cores e o nível de renda, com seus óbvios atributos de tipos de vestimenta, bens de consumo e qualidade dos dentes. Mas a mudança é muito mais profunda. São pessoas oriundas das escolas não elitizadas, frequentemente do ensino público, com todas as suas carências. Embora eu faça questão de destacar, em todas as oportunidades que tenho, que em Belém as escolas só são elitizadas por critérios de arrogância, não de qualidade. Em termos de conhecimento acumulado e capacidade de raciocínio lógico e crítico, os alunos não se distinguem de um modo que eu possa identificá-los se, por exemplo, apenas lesse as suas provas.

A mudança é mais sensível, porque as experiências de vida, as aspirações e as irresignações que chegam à sala de aula são diferentes. Sendo eu professor de direito penal, o campo jurídico em que mais explodem as consequências das desigualdades sociais, a chegada de uma compreensão menos gourmetizada do mundo é um alívio e uma necessidade. Em que pese, aqui também, as diferenças serem incipientes. Ainda estamos apenas no começo, mas já começamos.

Neste momento, tenho turmas novas, de direito penal I, justamente o período mais delicado, em que preciso orientá-los sobre como a orquestra realmente toca, enquanto, em redor, os comensais pensam que todos foram convidados a compartilhar a mesma mesa, a mesma música. E há os animadores, repetindo isso à exaustão, para que todos acreditem. Contudo, se olharmos em volta, os que bailam e os que servem são claramente distinguíveis e isso não ocorre por acaso. Por saber disso, por viver isso, por sentir isso na pele, Renan teve a ousadia de escolher, como tema de monografia, o racismo entranhado nas instituições brasileiras. O mesmo racismo que, para a criminologia, é a causa de mortes e de infinitas outras violências, desde o berço.

E foi assim que Renan, que não foi meu aluno, chegou a mim, para orientação da monografia, permitindo-me uma experiência inédita e profundamente recompensadora, a começar por sua enorme autonomia: ele já sabia exatamente o que precisava dizer. Eu só ajudei na forma acadêmica.


Banca do Renan (março de 2016): em discussão, o racismo institucional no Brasil.
Na foto, eu, Renan e o Prof. Adrian Silva

Renan, recebe meu abraço apertado pela tua formatura. Tu és um exemplo, pelo salto dado sobre todos os eventuais prognósticos desfavoráveis de tua vida; pela consciência crítica do que é o mundo; pelo desejo sincero de transformá-lo (em vez de, simplesmente, ascender socialmente e gozar a experiência de estar do outro lado, esquecendo as origens e quem está atrás, como muitos escolhem fazer); pela honra que conferes a tua mãe (aquela mulher de sorriso maravilhoso), que batalhou para te criar e que saiu chorando na foto, como um dia minha mãe também chorou e por razões bem parecidas; e por fazer isso com tanto estilo e confiança, mandando um beijinho no ombro para azinimigas.

Pessoalmente, muitíssimo obrigado por compartilhar a tua conquista pessoal comigo.

O resto tu já sabes: resistência, sim. Resistência sempre.

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