sábado, 22 de julho de 2017

Na porrada

Um dos textos mais conhecidos de Fernando Pessoa (no caso, sob o heterônimo de Álvaro de Campos) é o "Poema em linha reta", que inicia com versos célebres:


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


Abstraindo a ironia do poema, estou me sentindo exatamente o oposto do que essas palavras dizem ― muito mais perto do que elas provavelmente pretendem dizer. Se bem que o poeta criticou a hipocrisia e o meu problema é um pouco diferente. Talvez cegueira seja o termo. Uma cegueira caracterizada não pela impossibilidade, mas pela recusa deliberada em enxergar as próprias ações e os sentimentos alheios.

Também eu tive 20 anos. Também eu me acreditei sábio, infalível e melhor do que os outros(*), embora provavelmente isso fosse mais defesa do que convicção. Havia em mim a centelha da compreensão de todas as minhas fraquezas, mas eu acreditava estar certo e o resto do mundo, errado. Já naquela época me diziam que isso era marra de adolescente e eu me ofendia. Porque eu era um adolescente ou pós-adolescente. Hoje, percebo que as pessoas tinham mesmo razão. A vida também é feita de obviedades terrivelmente repetitivas.

Há pessoas que só aprendem apanhando. Mas, às vezes, por amor ou tibieza, ou por qualquer um dos outros motivos que conduzem nossas vulnerabilidades, nós evitamos que apanhem. Nós tentamos os caminhos que nos parecem mais fáceis: orientar, ensinar, exortar, conclamar; depois brigar, repreender, castigar, reiterar; depois repetir, pedir, suplicar, chorar. Pode acontecer de passarmos anos tentando variações disso tudo. Sem sucesso. Chega a hora, por fim, de aceitar que algumas pessoas somente aprenderão alguma coisa tomando porrada. E que, talvez, o melhor a fazer por elas é abrir a porteira para o mundo e deixar que se lancem, como sempre quiseram, para ver no que dá.

Não é algo que possamos fazer sem sofrimento. Mas o sofrimento já existe. Chega uma hora em que entregar a pessoa a si mesma é um ato de legítima defesa. Ela cresceu, é supostamente livre e pode fazer suas escolhas. A nós cabe seguir amando, se ainda é possível. Rezar, caso se acredite nisso. Torcer pelo sucesso, ao menos. Ou esquecer, se formos capazes.

Mas, sem dúvida alguma, há coisas que não podem continuar como estão.

(*) Esse tipo de atitude pode ser vista nas postagens da primeira fase deste blog. Textos implacáveis em suas valorações. Com o tempo, creio ter ficado mais compreensivo e moderado. Dizem os mais sábios que, com a idade, vamos aprendendo a calar.

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