quarta-feira, 2 de agosto de 2017

A magistrada e a mãe

A imprensa e as redes sociais têm repercutido, há uma semana, o fato de que a desembargadora do Mato Grosso do Sul e atual presidente do Tribunal Regional Eleitoral daquele Estado, Tânia Garcia de Freitas Borges, teria liberado o filho da prisão pessoalmente, ao arrepio das normas aplicáveis à matéria. Por isso, já foi instaurado um procedimento disciplinar no Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Lendo as matérias sobre o caso, pus-me a matutar sobre a responsabilidade da desembargadora, mas decidi articular uma opinião influenciado por uma postagem no Facebook, de autoria de minha amiga Krystima Karem. Ei-la:


O que mais gosto na reflexão de Krystima é o aspecto humano: ela se lembra de que somos pessoas, inerentemente falíveis e movidas por emoções, e sem fazer um julgamento de valor (aliás, ela se confessa desconfortável para isso), questiona. Ou se questiona. E nos provoca a compartilhar a sua inquietude.

A postagem ensejou alguns comentários, de tom enérgico e moralista, nos moldes em que se movem as pessoas nas redes sociais: profundamente donas da verdade e ávidas por julgar os outros, exigindo moralidades e condutas que, talvez, os críticos não possuem ou não sejam capazes. Comentários também sobre o sistema punitivo brasileiro ser "excessivamente garantista". Não perderei meu tempo com isso. Separei os comentários de duas outras amigas muito amadas, Ana Darwich e Bárbara Dias, pois estes me ajudam a seguir o raciocínio que pretendo fazer. 


Quando li reportagem sobre possível punição a ser aplicada pelo CNJ, minha cabeça de penalista/criminólogo (essencial esclarecer que é deste local que falo, pois não sou filósofo, psicólogo ou especialmente versado no estudo da Ética) se fez duas perguntas: (1) Existe mesmo alguma possibilidade de a magistrada ser punida, em um ambiente tão corporativista como é o judiciário? (2) Podemos pensar em alguma excludente de responsabilidade para ela?

A primeira questão respondi aplicando o conceito criminológico de criminalização por comportamento grotesco (Zaffaroni). Embora o CNJ vá apurar responsabilidade administrativa e não penal, a lógica dos processos sociais de criminalização se aplica com perfeição, a meu ver. Explica-se assim: há pessoas que, em princípio, não pertencem à clientela habitual do sistema punitivo (aquelas vulneráveis por estereotipização), mas que acabam alcançadas por ele devido à prática de um comportamento tão grosseiro que não pode ser ignorado. Afinal, o sistema precisa vender a imagem de honestidade e de legalidade. O que fez a desembargadora foi tão grave, e com tanta repercussão, que é bem provável que ela seja punida, sim. Punida à moda judiciária, é bem verdade.

Quanto à segunda questão, que é o mote da reflexão aqui discutida, pensei imediatamente nos requisitos da culpabilidade, em particular a inexigibilidade de conduta diversa. Afinal, se o meu filho está dentro de uma prisão brasileira, cujo horror dispensa apresentações, e eu disponho de recursos para liberá-lo imediatamente, é razoável que eu o mantenha sob sofrimento para honrar a lei, a ética ou outros motivos que me pareçam menos relevantes, diante da situação extrema em que nos encontramos?

Compreenda: raciocinando muito em tese, podemos até matar e não sofrer responsabilização sob o argumento de inexigibilidade de conduta diversa. Por que a falta da magistrada não poderia, então?

Uma resposta aparentemente favorável à agente, no entanto, começa a desmoronar quando ponderamos o seguinte:

1) Embora possamos, também hipoteticamente, emprestar a tese dirimente para o direito administrativo ― porque, afinal, somos humanos e o ordenamento jurídico se pretende coerente ―, a aplicação de princípios e normas deve respeitar as características próprias do campo. A inexigibilidade de conduta diversa existe porque o direito penal produz as penalidades jurídicas mais severas, sendo um limitador indispensável, a fim de prevenir o excesso, com risco de esgotamento existencial do imputado. Por isso, é cabível a sua aplicação para impedir que uma pessoa fique presa por longos anos, mas seria cabível para evitar uma penalidade disciplinar, mesmo que elevada? Ainda mais sabendo que a maior pena permitida pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional é a aposentadoria compulsória com proventos proporcionais ao tempo de serviço, uma das maiores imoralidades estabelecidas pela lei?

2) Todo instituto excludente de responsabilidade (penal) possui limites, que separam o direito do abuso de direito, sendo este punível. Com efeito, posso matar em legítima defesa, mas existem limites ao conceito de legítima defesa. De um modo geral, as excludentes se baseiam na ocorrência de situações particularmente graves, excepcionais e urgentes, e no caso da culpabilidade, que limitem consideravelmente a capacidade de reflexão do agente. Não é exigível que uma pessoa tome uma decisão fria e ponderada se não está sob condições existenciais normais (Juarez Cirino dos Santos e Paulo Queiroz).

É aqui que a magistrada se perde. Comecemos pela extrema gravidade das acusações que pairam sobre o filho da mesma, que por sinal é um homem de 37 anos e não um garoto assustado. Ele foi preso portando 129 quilos de maconha (a quantidade excessiva o coloca como traficante), uma arma e enorme quantidade de munição, ambas de uso restrito, o que é fator de maior gravidade (v. minha postagem anterior: https://yudicerandol.blogspot.com.br/2017/07/um-pouco-da-seletividade-penal.html). Em relação a esta prisão em flagrante, o acusado obteve, em tempo recorde, um habeas corpus cuja fundamentação impressiona tanto pelos argumentos quanto por ser exatamente o oposto do que pratica o judiciário brasileiro.

De posse da ordem de habeas corpus, a desembargadora-mãe telefonou para o juiz da execução penal, mas este se recusou a liberar o preso, pois havia contra ele um mandado de prisão em aberto, sob outra acusação grave: envolvimento em uma operação de resgate de preso em penitenciária. Este fato não fora objeto do HC. Sendo assim, o juiz da execução estava corretíssimo: um alvará de soltura somente deve ser cumprido se por outro motivo não deva o agente permanecer preso.

Percebendo que o colega da execução manteria sua posição, a mãe então se vestiu de desembargadora, muniu-se do alvará de soltura e foi soltar o filho pessoalmente. Desculpe, mas não dá para escapar ao argumento de que ela deu uma carteirada imensa, porque o pessoal da penitenciária está acostumado a esses meandros e não engole qualquer argumento. Também é provável que o juiz da execução já houvesse dado instruções.

Por tudo isso, a tese dirimente cai por terra. É uma questão de a agente ter conhecimento especializado sobre a matéria; de ser autoridade incompetente e, mesmo assim, estar em posição de poder de fato sobre as pessoas que cumpriram sua ordem; de ter sido orientada de maneira específica pelo juiz da execução e, em clara desobediência à lei, exercido arbitrariamente as próprias razões; e de lhe ser exigível que buscasse os meios legais, ainda que lentos, de enfrentamento do problema.

Em suma, para mim, os motivos maternais da conduta podem ser considerados para fins de dosagem de uma eventual punição, mas não funcionam, de modo algum, como excludente de responsabilidade. Quanto maior a autoridade, mais exigível deve ser o seu aferramento à legalidade, pois não?

Por tudo isso, compreendo em parte a conduta, mas não posso ser solidário à magistrada, mesmo sendo pai. Pode colocar na conta da minha dureza pessoal. Não se pode praticar uma ação dessas e continuar no exercício da magistratura. A incompatibilidade é intransponível.

Ao fim e ao cabo, o grande problema, o que realmente tem incomodado tanto as pessoas, é saber que existem réus privilegiadíssimos, para os quais são aplicadas até mesmo garantias inexistentes, ao passo que, para a gigantesca massa de imputados em geral, só existem os rigores da lei e os intermináveis discursos moralizantes com que as agências punitivas sempre se expressam. E uma colossal dose de insensibilidade. Não dá para escancarar tão dramaticamente assim as disparidades sociais que tornam nossas instituições o que elas são.

Atualização em 21.7.2020

Em junho de 2019, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal manteve a decisão do Conselho Nacional de Justiça, que determinou o afastamento da desembargadora de suas funções (cumprido desde 9.10.2018). Cf.: https://www.conjur.com.br/2019-jun-03/stf-mantem-afastada-desembargadora-acusada-influencia-ilegal

No começo deste mês, o STF voltou a manter o afastamento da desembargadora, mas por outro motivo: paira sobre ela acusações de corrupção passiva e advocacia administrativa, no exercício de suas atribuições como magistrada estadual (venda de sentença). Com dois votos pelo afastamento, dos ministros Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, o julgamento deve terminar apenas em agosto. Cf.: https://correiodoestado.com.br/cidades/stf-julga-afastamento-de-desembargadora-por-venda-de-sentenca/374087

Por outro lado, a desembargadora conseguiu que o Superior Tribunal de Justiça confirmasse decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul, que rejeitou ação de improbidade administrativa, movida pelo Ministério Público Federal. Cf. https://www.campograndenews.com.br/brasil/cidades/stj-mantem-arquivamento-de-acao-por-improbidade-contra-desembargadora

Enquanto isso, em fevereiro deste ano o filho da desembargadora obteve a sua terceira condenação criminal e já pode pedir música no Presídio de Três Lagoas (segurança média), onde se encontra recolhido desde novembro de 2017. Ele acumula condenações por integrar organização criminosa e lavagem de dinheiro (9 anos e 6 meses), por tráfico de drogas e de munições (8 anos e 10 meses) e, por fim, porte ilegal de arma de fogo de uso restrito (3 anos e 30 dias). Cf.: https://www.msnoticias.com.br/editorias/geral-ms-noticias/filho-de-desembargadora-e-condenado-pela-3a-vez-em-ms/95837/

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